segunda-feira, 31 de agosto de 2009

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O  grande  caçador  Maia 
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(continuação...)

Esta descrição ( a do Maia a “justificar” ter-se ido meter à frente da bala que lhe atravessou a perna) fez o riso voltar àqueles rostos tensos. Até o Maia de perna atada teve que rir!
De volta ao acampamento, a vontade de caçar tinha-os abandonado. A ceia, sempre um bom momento de alegria e descontração foi comida em silêncio. Triste. No dia seguinte o Maia ficou deitado no acampamento e o Francisco foi só com o Ricardo caçar um ou dois antílopes para arranjar comida para eles e aquele povo.
Entretanto o pisteiro já não apareceu naquela manhã. Tinha sumido! Quando perguntaram por ele as respostas eram evasivas que ele não podia ir mais, tinha outras coisas para fazer, etc. Nova conferencia com o chefe da aldeia para arranjar outro pisteiro, e este do mesmo jeito, com os mesmos rodeios, não tinha outro capaz, estava ausente, e mais isto e aquilo, etc., a verdade é que ficaram sem guia.
Ainda um dia nesse acampamento, para descansarem da emoção do acidente, mas como não se podia esperar mais apoio do povo dali, foram obrigados a ir procurar outro local para continuar a caçada.
Desfazem o acampamento, carregam tudo de volta nos carros e aí vão eles, picada fora tentar continuar a caçada que tão mal começara. Percorreram algumas dezenas de quilómetros até outra sanzala, bem longe da primeira.
Mesma cena de início, conversar com o chefe da nova sanzala onde se depararam com as mesmas respostas, não tinha nenhum pisteiro bom, os animais andavam muito longe, a época não era a melhor, etc., etc. Estranho. Muito estranho. Ninguém mais queria ir caçar com eles. Afinal o que se estaria passando?
Conseguiram a custo saber que naquela região, imensa, se tinha rapidamente espalhado a notícia de que andavam por ali uns brancos que se queriam matar uns aos outros! E como é evidente ninguém queria colaborar com essa guerra!
Para compreender esta atitude é necessário conhecer um pouco a mentalidade daqueles povos simples. Os mais simples, os mais manhosos! Analfabetismo não é sinônimo de burrice.
Quando por qualquer circunstância um homem quer vingar-se de outro, nunca o faz declaradamente. Tem que ser pela calada, sem que jamais possa levantar suspeita. A vingança pode provir de um caso de amor, da perca de uma posição mais influente, de uma acusação pública, até de simples inveja, se inveja pode ser coisa simples.
Sendo a paciência uma das virtudes dos povos simples, a espera não tem pressa porque tempo pouco conta. O momento oportuno sempre acaba por surgir, sobretudo nas reuniões de todos os homens que, em ocasiões especiais, se sentam a noite toda, em círculo, ao redor do fogo, discutindo, pouco, e bebendo, muito. Bebidas fermentadas por eles mesmos preparadas, e sempre de mais elevado teor de álcool para estas quizombas, reuniões a que preside o soba acompanhado pelo quimbanda, o feiticeiro e curandeiro e todos os homens da sanzala.
Para consecução desse ato, o vingador precisa da colaboração de um ajudante, a quem todavia não põe ao corrente do que pretende fazer. Escolhe um dos seus amigos, de amizade consolidada, que sem saber vai ser o cúmplice. Entretanto começa por procurar cativar a confiança de quem se quer vingar, tornando-se seu amigo, o mais prestável, mais humilde, mais intimo, para afastar quaisquer suspeitas entre todos na aldeia, que passa a ver que eles são mesmo amigos.
Com o aproximar do dia da ação, prepara um veneno forte, coisa que não é segredo para ninguém que vive no meio da natureza, e na noite da assembléia o acaba se sentando no meio dos dois amigos. A vitima de um lado, o cúmplice do outro, com o objetivo de afastar ainda mais qualquer suspeita. Ele fica entre os dois maiores amigos, o que é natural.
A bebida é servida em cabaças, continuamente, uma só estando na roda de cada vez, que vai passando de mão em mão, sempre num mesmo sentido de rotação. Cada um bebe uns quantos goles e passa ao seguinte. Do lado por onde ela há-de vir senta-se o cúmplice, do outro a vitima. O veneno, bem forte, leva-o o “vingador” embutido na unha de um polegar. A cabaça com a bebida alcóolica roda a noite toda, passada invariavelmente da esquerda para a direita, só parando quando vazia, para se encher de novo. Numa dessas rodadas a cabaça há-de chegar às mãos do cúmplice só com bebida suficiente para um ou dois beberem. O vingador está atento, e logo que percebe que o momento é chegado, sem que alguém note, o que não é difícil porque o álcool já tolda a maioria deles, não deixa o cúmplice beber, para não perder a oportunidade de receber a cabaça quase vazia. Nessa altura ele bebe um pouco, finge que bebe, enquanto mergulha bem o dedo com o veneno que se vai misturar aos últimos goles da bebida. Feito isto passa a cabaça para o lado, tendo o cuidado de fazer o parceiro beber até a derradeira gota, o que também não é difícil, porque a cabaça já vai quase vazia e todos gostam bem de se embriagar. A festa continua, o álcool vai fechando os olhos de alguns e a mente de todos, mas assim mesmo só pára alta madrugada quando caem os últimos bêbados.
No dia seguinte a ressaca é geral, mais sentida por alguns. A vitima tem uma ressaca muito mais forte, o que a ninguém causa espanto porque há sempre uns a quem a bebida faz pior. Mas a ressaca dele não passa, e ao fim do dia piora. Sente-se mal, com diarréia, febre, fraqueza. Ninguém o mandou beber tanto! Em menos de quarenta e oito horas está morto! O vingador perdeu um amigo! E leva a encenação até ao fim, mostrando-se muito sentido com a falta do amigo!
Foi este mesmo quadro que aquele povo viu naqueles amigos que foram caçar! Muito amigos, mas caçadores com boa pontaria como vai um acertar o outro? De certeza que querem matar-se! Até o tal cúmplice estava presente possivelmente para ajudar a posicionar a vítima no melhor local para levar o tiro! Não puderam convencê-los que entre brancos as coisas não funcionam desse jeito! Não houve maneira.
E esta caçada nas terras do fim do mundo que tinha tudo para ser uma maravilha, acabou por ser um tormento. O objetivo eram os elefantes. Tentaram depois procurá-los, mas sem pisteiro. Andaram muito perto deles, mas nunca em posição de tiro. Ao fim de uma semana foram obrigados a abandonar a região, tristes, tensos, com a perna do Maia dolorida ainda, mas sem dar preocupação de maior.
Levaram dessa caçada esta versão de costumes, estranha, mas autêntica.
O Maia ainda combalido do tiro na perna !
O Maia estava em Angola desde os seus vinte anos. Português, beirão, para ali fora cedo por não querer cumprir o serviço militar! Estava-se em plena Segunda Guerra Mundial, em que Portugal não entrou, mas podia ter sido obrigado a isso, como o obrigaram na de 1914-18.
Logo ali chegado, com algum crédito junto a casas comerciais das cidades principais, foi estabelecer-se na região dos ganguelas, perto de Vila da Ponte onde depois se veio a fixar. Por essa época estava a começar a construção do prolongamento da linha férrea de Lubango às minas de ferro da Jamba. As estradas, se estradas se pode chamar ao que eram os caminhos em Angola naquela época, eram péssimas. Tempo de guerra. Dificuldades de toda a ordem, inclusive de combustível para os caminhões se deslocarem. Alguns queimavam diesel misturado com óleo de dendê, álcool e tudo o mais que pudesse ser encontrado! Parados é que não podiam ficar. Muita gente que era preciso alimentar.
Para obras publicas ou de envergadura importante, em que se empregava bastante mão de obra local, nativa ou não, o governo concedia a experientes caçadores uma licença especial de caçador profissional, que lhes permitia abater peças de caça para fornecer alimentação a esses grupos de trabalho. Eram homens com grande conhecimento das regiões onde atuavam, atiravam muito bem, e sabiam perfeitamente o que podiam e não deviam abater.
O Maia antes de ir para Angola nunca tinha dado um tiro na sua vida, e admirava profundamente o caçador profissional que trabalha naquela região, e que ele recebia com frequência na sua modesta casa de comércio, e com quem já tinha saído algumas vezes. Via o outro apontar e com um só tiro sempre abatia alguma peça de caça, façanha que o fascinava. Um dia perdeu o acanhamento:
- Eu gostava muito de experimentar dar um tiro.
- Quando quiser. Vamos lá.
Maia pega na carabina do amigo faz uma marca numa árvore e dispara. Onde foi parar a bala, ninguém sabe. Ficou um quanto desapontado mas o caçador tranquilizou-o. Ele mesmo no principio tinha dificuldade em acertar, mas tudo era uma questão de hábito.
Maia sonhava em ter uma arma e ir à caça. Ao primeiro caixeiro viajante que depois disto por ali passou, comprando gêneros de produção local e recebendo pedidos de encomendas que seriam depois remetidas pelos camionistas, os caminhoneiros, pediu um favor. Deu-lhe dois mil escudos para que lhe comprasse uma carabina. O dinheiro que sobrasse gastasse todo em balas. E ficou à espera, ansioso. Uns seis meses depois o mesmo viajante voltou, e trazia a arma! Que maravilha! Uma .22 Long e uma quantidade grande de caixas com balas.
Maia mal pôde esperar. Fez uma cruz no muro do pátio da sua casa, enfia uma bala na câmara, afasta-se uns dez metros, dispara, mas o tiro acerta a mais de meio metro do centro! Como era possível? O caçador profissional onde punha o olho punha o tiro e ele nada! Apontou de novo, devagar, e percebeu então porque não acertava. O cano oscilava muito. Tremia. A arma não ficava quieta, e assim ele não conseguia apontar.
- Hummm! É isso. Preciso apoiar o cano.
As janelas da sua casa tinham trancas por dentro. Pega uma delas, com um serrote faz-lhe um corte em V numa das pontas, e vai experimentar de novo apontar. A tranca no chão, o cano apoiado dentro do V, agora sim, a arma ficava quietinha e ele apontava à vontade.
O pequeno cabrito que não ganhou para o susto!
Mal escureceu, chamou um dos seus empregados de mais confiança a quem entregou uma bateria de carro e o farolim, e não foi preciso andarem muito para que logo surgissem a brilhar dois olhos dum pequeno cabrito do mato. Cinzento, o Dik-Dik (Sylviacapra grimmia), bichinho que pesa uns dez a doze quilos, comendo tranquilo umas verduras na sua própria horta. Aproximam-se a uma dúzia de metros, o cabrito despreocupado, não pára de comer.
Farolim apontado, o Maia que tinha levado três balas, mais do que suficiente para o que ele queria - o caçador profissional com cada tiro abatia uma peça - apoia a tranca no chão, assenta o cano da arma na ranhura em V, firme, aponta, dispara, e a bala segue zunindo pela noite. O cabrito, ótimo, cheio de saúde, assustou-se, pestanejou e continuou comendo. Um sinal ao ajudante para que se aproximem um pouco mais. Dez metros, menos ainda. Tranca, arma apoiada, mas a tão curta distância já não era fácil apontar. A tranca era comprida, e dificultava o apontar para baixo. Segundo tiro, e a segunda bala segue correndo atrás da primeira. Atirador mais espantado do que o cabrito!
- Psst! - e novo gesto para que avançassem. Ficaram a uns cinco metros.
Olhem só o cabritinho... tranquilo !

Com tranca e tudo a pontaria estava mais difícil e o Maia, de fraca estatura, teve que se pôr nas pontas dos pés para tentar mirar o bichinho. Terceiro tiro. Terceira bala a zunir na noite dos ganguelas. O cabrito? Continuava a pastar, ali mesmo na frente deles.
O Maia admirado com a falta de sorte e já sem balas,
- Kuata espingarda!
Entrega a arma ao ajudante faz-lhe sinal que fique quieto e continue a apontar o farol. Passa fora do foco, vai por detrás do pobre cabrito e dá-lhe uma trancada na cabeça! Matou.
O empregado só disse
- Háca! Patrão! - e riu com vontade.
Patrão foi avisando:
- Você não vai contar nada disto. Diz que patrão matou só no terceiro tiro, porque não está habituado neste espingarda. Ouviu?
- Sim siô. Patrão.
Entrados em casa o empregado num instante põe em cima da mesa tudo o que seria o jantar do patrão e sai para o pátio, onde sempre à volta do fogo, se juntava com os restantes empregados, mesmo de outras casas comerciais. Pouco depois começam a ouvir-se sonoras e gostosas risadas, e o patrão desconfiado vai ver o que se passa. O seu ajudante na caça, aquele a quem pedira segredo absoluto do modo como apanhara o cabrito, de pé, teatralizava a história gesticulando e enfatizando mais ainda o que de ridículo a situação pedia!
Nessa noite o grande segredo ficou sendo do conhecimento de todos os habitantes daquela povoação!
Mas o Maia não desistiu. Só deixou foi de levar ajudante para a caça! Durante meses, sem que o ânimo lhe faltasse, continuou a caçar, mas sempre sem sucesso, e a sua fama de péssimo matador foi-se consolidando. Aliás nem péssimo era. Não era! Sempre que regressava os vizinhos perguntavam
- Oh! Maia! O que caçaste hoje?
Nada. Sempre nada. Até que um dia...
Sempre insistindo, está numa área de capim bem alto e vê, vindo por um trilho, direitas a ele, duas Quissemas ou Burro do Mato ou Côco (Cobus Defassa Penricei). As quissemas são animais com uma altura dorsal de cerca de um metro e vinte, e peso que ultrapassa facilmente os duzentos quilos. Maia esconde-se atrás de uma árvore ao lado do caminho, carrega a arma e espera. Passa o primeiro animal, a uns três metros, e sai o primeiro tiro. Cai uma quissema. A outra fica especada sem saber de que lado estava o perigo, Maia carrega de novo, volta a disparar, e... mata a segunda!
As duas quissemas ausentes do perigo do "caçador" Maia "
Hurrraaah! Hurrraaah! Hurrraaah! Quebrara o enguiço. Tinha finalmente caçado! E logo duas quissemas!
Mas, e agora, como levar os bichões, enormes, para casa? Não tinha a menor condição de levar uma só quanto mais duas, e se fosse pedir ajuda, ninguém o ia acreditar. Solução? Simples. Cortou as quatro orelhas, meteu-as nos bolsos, e tentando aparentar tranquilidade que não tinha, volta com ar feliz à povoação, e vai direto a um vizinho, o único que tinha uma carrinha, pedir ajuda para carregar uns animais que tinha morto ali.
- Você, Maia? Você nunca matou nada! - e gozava.
Este com ar solene mete a mão no bolso e joga em cima do balcão o documento comprobatório:
- Duas quissemas. Duas. Estão a menos de dois quilómetros daqui.
Uma das quissemas ainda com as duas orelhas...
- Puxa. Querem ver que é mesmo verdade!
Comerciante, mulher e filha conferem as orelhas, que eram verdadeiras. Duas do lado esquerdo e duas do direito, tinham que ser de dois animais. Aliás nenhum tem quatro. Querem ver que o Maia caçou mesmo?! A povoação despovoou-se. Todos acorrem ao local indicado, onde as quissemas jaziam. Foi uma festa. Carne para toda a gente. A consagração do Maia que, com esses dois tiros, mesmo disparados à queima roupa, deve ter aprendido como se atirava! Acabou sendo um ótimo caçador, e mais do que isso um estupendo e alegre companheiro de caça, que por fim até passou a saber que as balas fazem ricochete na água!
in "Contos Peregrinos a Preto e Branco", de Francisco G. de Amorim, 1998
(Por onde andará, hoje em dia o meu querido amigo Carlos Vieira da Maia? Quem souber alguma coisa que me avise)
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2 comentários:

  1. Amigo Amorim, conheci o Sr. Maia(Kamakapa), e
    frequentei muitas vezes a sua casa em Vila da Ponte(hoje Kuvango), pois era muito amigo de seu filho(Helder)que estudou comigo em Nova Lisboa.
    Sei que quando sairam de Angola, vieram para
    Portugal para Mortágua.

    Abraço
    Fernando Simões (Cuchi)

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  2. Fernando
    Muito obrigado pelo seu comentário. Veja se consegue mais informações e pode mandar-me por email oyarzun@terra.com.br
    Um abraço
    Francisco Amorim

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