quarta-feira, 5 de agosto de 2009

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O ALBERTO
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O pisteiro era um elemento fundamental na caça. Sem ele a caçada quase sempre se transformava num incómodo passeio de jeep.
Um homem especial. O caçador. Que pertence a uma classe à parte dentro da estrutura social em África. Não é qualquer um que é caçador. Quanto mais primitivo o homem mais em harmonia com a natureza ele consegue viver. Respeita e teme as suas forças que em grande parte deste continente ainda se impõem como uma espécie de religião. Mas em África como em qualquer outro lugar do planeta nenhum ser humano hesita em se sobrepor ao que hoje se chama de equilíbrio ecológico, ao ambiente. Basta que a população cresça, que os pastos do gado faltem, que lhe proporcionem qualquer negócio, para ele derrubar a mata, esgotar a terra, e se mudar para zonas mais intocadas. Assim se fez desde sempre, e fizeram-no brancos, amarelos, índios e africanos. Todos sabem que dependem desse equilíbrio, e enquanto as pressões não forem superiores à sua capacidade de resistir, a Mãe Natureza vai sendo mais respeitada. Fora disso...

Um homem "mucubal" no seu ambiente (foto do blog hunakulu)

Em todos os continentes os povos sempre se dividiram, e dividem ainda hoje, socialmente, sendo uns guerreiros, outros comerciantes, outros ainda agricultores, etc. mas pelo menos em África o caçador era talvez o mais especial. O caçador e o ferreiro. Depois de ser escolhido para essa função, quer por hereditariedade ou por mostrar para isso aptidões, é ensinado pelos mais velhos numa arte que além de muita ciência tem um quanto de esoterismo. Só quem viu pode ter alguma idéia do que se trata. A profunda comunhão entre o caçador africano e o ambiente é impressionante. Eram estes homens que serviam de pisteiros aos caçadores, colonos ou europeus. Perseguir um animal sem eles era quase impossível. Na savana, na mata, na floresta, no deserto, o pisteiro sabe onde se encontra a caça e que tipo de caça. Sabe há quanto tempo passou o animal, que animal, e até quantos. Pelo corte de um folha de capim destingue o antílope que a comeu e há quanto tempo cortou aquela folha. Outra folha de vegetação rasteira, pisada e que tende a retomar a sua posição indica também o tempo que passou. Um galho quebrado. A profundidade da marca no chão. Os excrementos, que são indícios precisos.
O bom pisteiro sente no ar a presença da caça.


A cerca de trinta quilometros para norte da cidade de Moçâmedes, hoje Namibe, o nome do deserto, há uma praia, a Baía das Pipas. À sua volta nada mais do que praia, muita praia, quilometros e quilometros de praias intocadas, o mar a poente o deserto no nascente. Ali a corrente de Benguela, ainda muito fresca, o mar riquissimo em peixe, frutos do mar, águas azuis, transparentes. Poluição é palavra desconhecida. Um lugar maravilhoso. Paradisíaco.
Nessa baía se foram estabelecer no princípio deste século XX dois pescadores portugueses acabados de chegar a Angola. Nada, nada havia ao redor. Nem uma cubata, que eles tiveram que construir para morar. Foram pescar e viver disso. Precariamente, em termos econômicos, mas sem que nunca lhes faltasse comida.
Ambos se juntaram, talvez até tivessem casado de papel passado, com mulheres indígenas, uma delas irmã de um soba da região, de quem tanto um quanto o outro tiveram boa dose de filhos. Cinquenta anos depois só um dos casais estava vivo, velhote, uns quantos filhos, sobrinhos e netos à volta. Moravam nessa altura em cinco ou seis casas já de alvenaria. A cidade mais longínqua que tinham conhecido era exatamente Moçâmedes! Uma existência de faina e vida tranquilas.

* Esta fotografia com o velho amigo Alberto Gomes foi encontrada hoje, por um acaso sensacional, no blog princesa-do-namibe!

Um dos filhos, o Alberto, Alberto Gomes, um mulato grande, robusto, coração maior do que ele todo, uma mão enorme forte como uma torquês, simples, muito simpático, sempre sorridente e alegre, sorriso transparente como as águas daquele mar, uma figura humana que não se consegue esquecer.
Podia quem quer que fosse chegar à Baía das Pipas, a qualquer hora do dia ou da noite, que toda a família logo saía de suas casas para ver o que estava acontecendo! Quem os fosse visitar levava normalmente vinho e cerveja, batata, arroz ou algo de mercearia que pudesse complementar o que a natureza e o seu trabalho lhes dava. O deserto, onde às vezes se passa um e dois anos sem chover, junto à orla marítima tem um nível freático muito alto, o que permite manter o ano inteiro uma horta produzindo ótimos e frescos legumes. E aquela gente tinha-a. E muito mais: tinha o mar. Geladeira não havia nem dela muito necessitavam, porque o mar fornecia a qualquer hora tudo o que quisessem. Era só chamar alguns garotos, os sobrinhos, que corriam para a água e passado pouco traziam uma imensa variedade de peixes, camarão, lagosta, mexilhão, e um monte de outros frutos do mar. Imagine-se como eram frescos!
Depois, acender o fogo, esperar um pouco e deliciar-se com tudo aquilo! Entretanto o Alberto pegava na sanfona tocava uns fa-ri-funs em ritmo misto da terrinha dos velhotes com influencia angolana e saía um bailarico, porque mesmo que os visitantes não fossem de ambos os sexos, o que era raro, tinham como par as filhas, sobrinhas, uma irmã e até os pais, velhotes e engelhados os dois, que sempre davam o seu pé de baile!
A vida naquele canto quase esquecido do mundo era de uma pureza impressionante, e ninguém conseguia dali sair sem lá deixar um pouco do seu coração!
A velhota, talvez com setenta, oitenta anos, ainda se enciumava ao ver o marido dar um pé de dança com alguma jovem visitante! Era uma cena engraçadissima, ternurenta.
A inocência, o carinho e a alegria dessas festas deu como resultado levar a fama do Alberto a expandir-se Angola fora, pelos amigos dos amigos. Todos queriam conhecer essa rara espécie de homem! Chegou um dia ao pessoal da marinha de guerra portuguesa, que patrulhava a costa.
Uma bela manhã com tremendo susto e espanto, aqueles simples moradores assistem cheios de pasmo a um imenso navio de guerra, uma fragata, fundear em frente à baía, coisa absolutamente inédita. Os maiores navios que ali tinham ido eram algumas traineiras de pesca, a pescar ou comprar o peixe ou o marisco que aquela gente apanhava e criava em viveiros. Um navio de guerra foi além dum espanto um temor: o que quereriam?
Do navio sai um bote com dois marinheiros e um sargento, que ao desembarcarem são rodeados por toda a população local, que não devia ultrapassar umas vinte pessoas, entre adultos e crianças.
- Quem é o senhor Alberto?
Alberto, desconfiado, apresentou-se.
- O senhor comandante Navarro manda convidar o senhor para almoçar a bordo.
- A mim??!!!!
O humilde e grande Alberto convidado por um comandante dum navio de guerra para almoçar a bordo, era o máximo que ele nunca tinha esperado que a vida lhe proporcionasse! Correu a casa vestiu uma roupa melhorzinha e seguiu no bote. À chegada ao navio, a cerimonial guarda de honra, apitos, continências e apresentações, que todos queriam conhecê-lo, e o Alberto, grande e humilde, espantado e confuso, sem compreender bem o que lhe estava acontecendo, sempre com o mesmo sorriso aberto, franco.
O comandante, amigo de amigos, quis também conhecê-lo e achou que face à fama do Alberto esta seria a melhor maneira de lhe retribuir a simpatia que ele difundia.
Visita ao navio, surpresa e espanto atrás de espanto e surpresa, que finaliza com o almoço na sala dos oficiais. O Alberto não cabia em si de felicidade. Durante o almoço contou inúmeras peripécias da sua vida simples. Todos se divertiram e saborearam aquela alma.
No fim, o convidado, comovido com tanta honra que pareciam lhe prestar, e prestavam, abre os braços e só consegue exclamar:
- Eu, e os meus oficiais!
Foi a apoteose.
Se ele um dia pudesse ler esta singela homenagem que com muita saudade e respeito também para ele aqui fica...
Mas, lá na Baía das Pipas, se fosse madrugada ou já de tarde aproveitava-se para dar uma volta pelo deserto, que generoso também, sempre fornecia alguma peça de caça para complemento daqueles manjares divinos.
Numa das vezes saíram num Fusca dois dos visitantes e o Alberto que conhecia aqueles trilhos todos como as suas próprias mãos, apesar destas serem enormes! Nesse dia a caça parecia teimar em não aparecer. Uns cinquenta quilometros adentro do deserto encontraram um caçador mucubal, da tribo Cuvale habitante aquela região, que seguia tranquilo o seu caminho, aparentemente sem destino, porque parece que o deserto nunca leva a lugar algum! O deserto parece não ter fim.

Alberto mandou parar o carro e foi consultar aquele homem. Saber se ele tinha visto alguma caça ou se sabia onde encontrá-la. O homem, figura de legenda, pele escura como a noite, rosto sereno de máscara, sempre em silêncio, afastou-se uns vinte metros do carro, esteve quase imóvel por algum tempo, virou ligeiramente a cabeça para um lado, depois para o outro e quando se aproximou de novo, levantou um braço, apontou numa direção e disse secamente, na sua língua:
- Ngongo. As zebras estão ali.
As zebras ninguém iria matar, mas ver valia sempre muito a pena. Meteu-se o carro a caminho, andando com facilidade já que o terreno plano permitia correr a sessenta ou mais por hora. Andados uns quinze minutos, dez ou quinze quilometros, lá estava uma manada de zebras. Uns trinta animais. Exatamente na direção que o caçador mucubal indicara! Como ele o soube? Só ele sabe!
Valia muito a pena ir à caça só para ver o pisteiro conduzir os caçadores. Sempre em silêncio, passo ligeiro, nenhum detalhe por muito ínfimo que fosse escapava à sua atenção.
Muitos homens se ofereciam para acompanhar os caçadores, mas se não fossem pisteiros, a caçada não rendia, e até se chegavam a perder no mato!
Uma classe de gente muito especial.
Aahh! Baía das Pipas! Onde o Alberto guardava religiosamente num pequeno barraco coberto a chapa de zinco um velho Ford A, bem enferrujado com o ar do mar e com mais de 30 anos (isto em 1962 ou 3!). Era o orgulho dele: “o melhor carro para andar no deserto!” Devia ser mesmo. E prosseguia: “é só pôr um pouco de gasolina no depósito que ele pega logo”. Dizem-lhe os amigos visitantes: “Trabalha assim bem? Então vamos tirar do nosso carro que tem bastante”.
Comentário final do Alberto: “Só tem um problema. Falta-lhe a bateria”. Há quanto tempo?
“Bem, a última vez que o pus a trabalhar foi há uns nove anos”!
Grande Alberto!

in "Contos Peregrinos a Preto e Branco" de Francisco G. de Amorim, 1998







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